Digicrônicas

Ventos de outono

Por: Cristina Vergnano

Estamos quase na metade da estação. Quarenta e dois dias já se foram; restam, ainda, cinquenta e um. Por que, então, falar sobre ela justo agora, transcorridas tantas semanas? É que, ao sair à rua ontem no final da manhã, apesar de estar quente (um pouco incomum para a temporada), enchi-me de outono. Ele me levou a mergulhar em sentimentos moldáveis com palavras, às quais eu desejava dar vida. Além do mais, pode bem ser uma boa despedida de abril.

Neste quase mês e meio outonal, já tivemos frio, numa antecipação do clima de inverno, e calor. Poucas vezes o cenário se encaixou nas características típicas deste tempo, gravadas nos cantos da memória. Dois aspectos, para mim, marcantes, estavam, contudo, presentes nessa manhã: o céu de um azul intenso e o vento.

Minha mãe (lembrei-me dela), apesar de não ser fã deste último, gostava bastante da etapa do ano que estamos vivendo, em especial, de maio. Talvez fosse por coincidir com a época de seu aniversário. Creio, porém, não podermos reduzir a questão apenas a este ponto. Seus argumentos eram convincentes: um período de temperaturas amenas e agradáveis, um céu de colorido belíssimo e um mês de festas civis e religiosas. Outras pessoas conhecidas e da família também compartilham tal opinião, levando-me a avaliar serem justificáveis sua magia e encanto.

Da minha parte, como dizia, sempre me chamou atenção o vento. Até porque, não me refiro a um evento agressivo a ponto de dar medo, mas, sim, a uma brisa mais pronunciada e insinuante. Estar na rua, quando venta dessa forma, significa experimentar uma certa liberdade de voo. O movimento que fomenta dá vida à paisagem, a faz vibrar. Portanto, deixar-se levar pelo ruído suave das folhas, ver seu bailado enquanto caem, acompanhar os arabescos desenhados no ar pelas pequenas borboletas, embriagar-se da música dos mensageiros dos ventos pendurados em janelas e varandas, tudo isso contagia. Além de liberdade, creio que esse vento e a mistura do azul luminoso do céu com o verde intenso das árvores me transportam e preenchem com sensação de paz. Caminhar nessa atmosfera, então, é quase como meditar em movimento.

O pessoal das antigas sempre alertou contra os tais golpes de ar: um grande inimigo, aliado das constipações. Quem tem ou teve avós, bisas, tias e tios mais velhos já ouviu, muito provavelmente, essa expressão. Nem sempre a entendi de modo pleno, embora seja fácil extrapolar o sentido das palavras e chegar à conclusão de se tratar de um resfriamento súbito, batendo nas costas ou no peito, que afeta a saúde e deixa as pessoas propensas a gripes.

Nunca levei o ensinamento muito a sério quando nova, considerando exagero ou até crendice. Como consequência, guardo na lembrança minha autoimagem de garota, caminhando sorridente em meio às lufadas de ar fresco da estação, desafiando resfriados e enfrentando a poeirada que subia do asfalto ou da areia das praças.

Curiosamente, já adulta, descobri que, para a medicina tradicional chinesa, o vento é, sim, um elemento que provoca desequilíbrio no organismo. Constitui, inclusive, um conceito bastante complexo, pois implica um vento interno e outro externo, relacionando-se, também, a fatores emocionais. Naquele, envolve um desequilíbrio das energias internas do indivíduo, enquanto, nesse, se refere à entrada de energia exterior no organismo (poderíamos, aí, incluir patógenos carregados pelo ar), gerando desarmonia e a consequente doença.

Creio que há sabedoria nos conhecimentos populares e tradicionais. Mesmo sem entender o que está por trás dos efeitos, desde sempre, o ser humano pôde observar e aprender com a experiência que certas coisas fazem bem e outras, mal. Suponho que muita contemplação e alguma experimentação foram responsáveis por descobertas relevantes para a saúde física e mental. Isso, antes de a medicina e a biologia avançarem a ponto de explicar os motivos subjacentes aos fatos observados e apresentarem tratamentos.

Sendo assim, talvez devamos de fato nos precaver contra os malefícios das ventanias, não somente daquelas geradoras de devastação nos entornos urbanos e campestres. Mas, no final do dia, me dá muita pena perder a poesia do vento de outono que sempre me levou em suas asas. Só um pouquinho não deve fazer tanto estrago, certo?

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