Digicrônicas

Bem-vinda, primavera!!!

Por: Cristina Vergnano

Ao meu amigo Luiz, que sempre me envia imagens de flores…

Ele acordou com um sobressalto causado por um ruído agudo, insistente, desagradável. Levou alguns segundos para se dar conta de que o som vinha do despertador, indicando que era hora de se levantar. Demoraram outros tantos segundos para que percebesse que havia caído da cama, em meio ao sobressalto, e aterrissado sobre o tapete emborrachado e colorido que cobria todo o chão do quarto.

Sem nenhuma vontade, levantou-se, averiguando se nada estava quebrado ou contundido (o que não faria sentido, dada a maciez do tapete). “Não! Tudo em ordem.”

Estar em ordem era uma declaração imprecisa… Na noite anterior, havia deitado bem tarde, depois de estar trabalhando compulsivamente para terminar um projeto para a reunião desta manhã. E, mesmo após ir para a cama, a mente acelerada não o deixou adormecer em seguida. Estava, portanto, exausto. Assim se sentia, assim se via diante do espelho do banheiro.

Lavar o rosto. Fazer a barba. Escovar os dentes. Pegar uma roupa apresentável no armário. Vestir-se. A lentidão em reagir, devido à semiprostração em que se encontrava, não ajudou em nada! O tempo tinha voado. Teria que sair uma vez mais sem o café da manhã. “Um cafezinho frio, parado na cafeteira desde ontem, e uma torrada meio murcha… Ao menos para isso dava! Era melhor do que nada e teria que servir…”

Mochila com o laptop e o pendrive (só por garantia, porque já tinha transferido o arquivo para a nuvem), sapato calçado aos pulos, chave, porta, corredor, elevador, rua!

A calçada já estava agitada com o vai e vem das pessoas indo para o trabalho. Correu em direção à estação de metrô. “Droga!!! Esqueci o cartão! Vou ter que entrar na fila para comprar a passagem…” “Ai, minha senhora!!!…. Isso lá é hora de pagar com moedinhas?!?” – pensou indignado, apoiando-se nervosamente num pé e noutro e olhando de forma compulsiva o relógio de pulso.

Comprou o tíquete e dirigiu-se com pressa para as escadas e a plataforma. Foi empurrando sem cerimônia quem se encontrava no seu caminho, tropeçou e quase caiu escada abaixo… “Nada feito!!!” Toda a afobação foi à toa… O trem acabara de partir.

“Hoje não é meu dia!!! Me pergunto se deveria ter saído da cama ou ficado por lá mesmo (ou caído no tapete)” – pensava enquanto esperava o novo metrô.

Por pouco não embarcou no trem errado! Quase tinha esquecido que havia composições para dois destinos compartilhando aquela via. Mas deveria agradecer a um senhor que se intrometeu entre ele e a plataforma. Ia até reclamar, mas se deu conta, no último minuto, de que a cor do trem era a errada. “Ufa!!! Escapei de outro desastre por um triz!!!”

Mas, apesar do alívio, nem pensou em agradecer ao destino ou ao tal senhor, pelo menos em pensamento. Sua expressão era irritada, angustiada, contorcendo-se entre a apreensão pelo atraso e as muitas preocupações que assolavam sua mente. Não sabia se tinha certos produtos em casa, se daria ou não para passar no mercado. Também se lembrou de uma conta que venceria hoje e do presente de aniversário que deveria comprar para sua velha tia, que viria de visita no fim de semana. Toda a família tinha um encontro marcado nos seus pais. E ele tinha tanta coisa para fazer!!!!

Finalmente, pegou o trem, avançou as estações necessárias, desceu às pressas, correu para o prédio da empresa, subiu esbaforido a escadaria externa, tomou o elevador apertado (já não bastava o sufoco do metrô?!?) e entrou intempestivamente na sala de reuniões. Por um brevíssimo segundo, antes de entrar, teve a impressão de que uma moça linda tinha passado por ele na saída do elevador e dado um sorriso. Mas não tinha tempo para confirmar. E poderia ser só impressão. “Afinal, quem sorria para alguém nesses dias?… E nessas horas atribuladas de trabalho?”

A reunião até que correu bem, considerando a nuvem negra que pairava sobre a sua cabeça desde o toque do despertador. Após uma apresentação discretamente elogiada (nenhum chefe era muito efusivo nos elogios, claro), foram colocados pontos que mereciam ajuste e nova rodada de conversas se estendeu até o final da manhã.

Na hora do almoço, era momento de deixar mais uma vez o prédio. Para almoçar? Claro que não! Havia muito a ser feito. Precisava passar no correio para pegar uma encomenda, ir ao shopping para visitar um novo stand de produtos eletrônicos de última geração e um sem-número de outras pequenas coisas. “O horário do almoço seria suficiente? Tinha que ser!!!”

Ele decidiu cortar caminho pelo parque. A tarde estava quente. O rapaz suava, na correria, dentro da sua roupa social. Puxou o celular do bolso (ele estava vibrando).

– Agora não, mãe! Não posso comprar nada! Estou atolado de serviço e correndo como um louco. Almoçar?!? Nem pensar! Não vai dar tempo! Que é isso, mãe?!? Não sou mais seu menininho! Tá, tá! Pode deixar! Vou tentar resolver isso. Sim!… Estarei aí no domingo. Não se preocupe!

“Droga!!!! Isso é hora de ligar para a gente?!?”… “Essa não! A bateria vai acabar! Se me ligarem do escritório, estou ferrado!!!!”

Tão desesperado ia, sufocado sob o peso das suas muitas preocupações, que entrou no parque sem nem notar. Não reparou no lindo céu de um azul profundo. Não sentiu o frescor da brisa e das sombras das árvores. Não ouviu o rumor da cascatinha artificial no riachinho também artificial daquele idílico ambiente, nem o canto dos pássaros. E ia assim, tão absorto com coisas sem sentido nem importância, que acabou tropeçando nas pedras da beira do caminho.

Saiu quicando, cai não cai. Celular para um lado, carteira para o outro, ele para frente… Teria se estabacado no chão, se não fosse uma árvore salvadora. Acabou trombando num ipê amarelo, maravilhosamente florido, e, quando deu por si, parou a sucessão de tropeços abraçado ao seu tronco.

O que ouviu foi uma sonora e melodiosa gargalhada. Olhou em volta e lá estava ela. A moça que supôs ter visto na saída do elevador.

– Foi uma tremenda acrobacia a sua! Acho que deveria mudar de profissão… – disse-lhe piscando.

– Não sei se tem graça… – respondeu, primeiro de cara amarrada, limpando e desamarrotando a roupa, dando uns passos atrás e pegando a carteira e o celular. – Quebrado!!!! Esse dia está cada vez melhor!!!

Disse isso, olhou para a moça que ainda sorria, subiu o olhar até a árvore salvadora, apreciou a beleza de suas flores, parou por um instante perplexo… e, sem mais nem menos, começou também a rir às gargalhadas.

– Você ia correndo comer em algum lugar? – perguntou ela após ele ter parado de rir para respirar.

– Não… Resolver coisas.

– Você sempre está assim, né?!?

– Assim como?

– Correndo para resolver coisas. …E as resolve?!

– Na verdade, não! Elas estão sempre correndo à minha frente. Nunca as alcanço.

– Uhnnnn… e vale a pena?

– O quê? – perguntou ele surpreso.

– Perder o almoço, as pessoas, as flores, o ar, o céu, os pássaros, a primavera, enfim, a vida?

– Sinceramente, sempre pensei que sim… Depois de hoje, começo a ter dúvidas.

–  Sério?!?  Sente-se aqui. Vamos dividir meu almoço. Sempre paro para comer aqui no parque, à sombra das árvores.

Ele sorriu. Ela olhou-o sem entender.

– Acabei de me lembrar. Hoje é dia 23 de setembro, não é?!? – perguntou ele.

– Sim…

– O dia não está sendo tão ruim, afinal… Bem-vinda, primavera!!! E os dois sorriram juntos, sob as flores do ipê e os ares primaveris, naquela quente tarde de setembro.

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