Narrativas breves

Série metamorfoseando o dia a dia – 2. Cotidiano: eu e tudo de novo


Por: Cristina Vergnano

Água de coco. Espreguiçadeira. Cheiro gostoso de verde. Frescor que abraça. O quê? Quem? Ah, maldito despertador. Roubou as férias que eu desejava tanto. Mas já tá na hora? De novo. Tudo de novo. Tudo sempre de novo. Tic-tac. O sono, o cansaço, o desejo de cama. Precisar sair da cama. Tic-tac. Maldito despertador. Levanta, corpo, levanta. Tic-tac. Banheiro. Como era mesmo o filme? Ah, All that jazz! O homem acabado diante do espelho. Eu acabada diante do espelho. A vontade de esquecimento. Tic-tac. Tic-tac. Aqui estou eu na cozinha. Tá tudo uma zona. Que vontade de sair correndo. Dane-se. Arrumo quando der. Comer algo. Tenho de comer algo, a hora tá passando. Tic-tac. Tenho hora. Não, não é isso. A hora me tem. Eu mesma não tenho nada. Tic-tac. Banheiro de novo. Espelho. Cara amassada. Escova de dentes. Roupa da yoga. Bolsa com roupa do trabalho. Eu presa naquela brincadeira sem graça dos tempos de criança: Grapete e Repete foram à feira. Grapete voltou. Quem foi que ficou? Repete. Grapete e Repete foram à feira. Grapete… Repete. Grapete e Repete foram… Repete. Grapete e Repete… RE-PE-TEEEE!!! Saio. Sempre saio, não tem jeito. Mas voltei. Esqueci a droga da máscara. Saio novamente. A yoga. Corpo são em mente nem tão sã assim. Quem não se cuida é relaxada. Repete aí: re-la-xa-da. Troca de máscara: suada não funciona. Trabalho. O trabalho enobrece. A quem? Nunca fui recebida pela Rainha Elizabeth. E olha que, a essas alturas, já devo ser nobre. Almoço. Pros diabos a forma. Yakisoba, porque eu mereço algum prazer nessa vida. Outra máscara. Haja grana pra tantas por dia. Trabalho de novo. Tic-tac. Tá acabando o dia. Só que ainda falta o mercado, as compras bem podiam chegar lá em casa sozinhas, ia ser o máximo, pra variar. E mais essa agora. Trabalho enobrecedor nem dá pra comprar um carro ou ao menos pagar um Uber, sofre, infeliz, no buzum nosso de cada dia, eu troquei a máscara, nem sei pra quê, tem tanta gente sem, azar se ficarem doentes. Eu, não, mas podia, só pra mudar alguma coisa nesse tédio. Podia mesmo? Tá doido! Cheguei. Cansada demais pra fazer qualquer coisa diferente de um banho. Como algum treco. Durmo largada na cama. A tevê ligada. Água de coco. Espreguiçadeira. Cheiro gostoso de verde. Frescor que me envolve e abraça.


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