Digicrônicas

Passagens


Por: Cristina Vergnano

Curta as festas. E… até 2026!”

Sentada à mesa cuidadosamente arrumada, ela sorriu ao se lembrar do cumprimento. Tinha sido repetido à exaustão para várias pessoas, em diferentes situações, nos últimos dias. A despedida parecia remeter a um território perdido num tempo distante. Só que não! Talvez menos de quarenta e oito horas a separassem do novo ano em cada encontro que motivou os votos.

Agora, em sua pequena sala, ela e o marido, só os dois, celebravam a ceia de despedida do ano que findava e de boas-vindas a um ciclo iniciante. Lá fora, fogos estouravam, rompendo a noite. Ecos do show de fim de ano numa tevê com volume muito alto, de vozes emboladas, gargalhadas, músicas, num conjunto caótico, contrastavam com a trilha sonora suave, as falas sussurradas e a paz isolada do casal. Aqui e ali, uma vibração no celular denunciava a chamada de parentes para desejar felicidades. O jantar se interrompia por um instante, os dois cumprimentavam, sorriam, ouviam e contavam novidades, manifestavam seu carinho, se despediam e voltavam ao seu rito particular.

Nesse ambiente, entre uma bocada e outra, na sequência de brindes e bate-papo, seu pensamento flutuava. Que sortilégio atribui tamanho valor à passagem das 23h59m do dia 31 à 0h do dia 1º? Por que um acontecimento tão corriqueiro e recorrente move de tal forma as pessoas? Desde quando essa alteração de calendário tem, em si, o poder mágico de mudar tudo, instaurando uma nova realidade, mais perfeita e gratificante?

Como costuma acontecer, pensamentos são fugidios e possuem vida própria. A conversa atropelou o fluxo das ideias, levando-as para outros rumos e as demandas do momento envolveram a mulher e a mergulharam na comemoração e no convívio com seu companheiro, até chegar o sono e 2025 cair no esquecimento.

Seres humanos somos marcados por rotinas e ciclos. A recorrência, aliás, faz parte da natureza: movimento dos astros, alternância das estações, tempos de gestação, nascimentos, crescimento e mortes. Às vezes, as reincidências nos entediam, como se vivêssemos aprisionados num looping. Em outras, sentimos falta da segurança vinda do familiar e previsível.

Talvez isso explique a força do ritual. Nada muda, óbvio, apenas por virarmos o ano. No entanto, saber que começamos outra etapa, e, apesar das repetições, poderemos tomar decisões inovadoras, abrindo possibilidades, é algo incrível. Somos feitos de memórias, esperanças, ações, ousadias e resgates. Um novo ano não precisa (e, com certeza nem o será completamente) de um amontoado de coisas inéditas. Mas deve vir com promessas de movimento.

Por isso, vale a pena desejar feliz passagem de ano, de novo e de novo e de novo. Pois sempre, na dinâmica circular da existência, teremos a oportunidade de construir e reconstruir algo fresco, bonito e cheio de significado.

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