Digicrônicas

Sobre vida, morte e inusitados presentes

Por: Cristina Vergnano

A vida é breve. Se pensarmos, todavia, nos avanços médicos e em como isso afeta positivamente a longevidade humana, talvez questionemos a afirmativa. Ademais, não costumamos ficar refletindo sobre a morte. Até porque, se o fizéssemos, perderíamos o presente e viveríamos menos, afogados de ansiedade. Mas, quando pensamos numa perspectiva histórica ou cosmológica, temos de admitir: nosso estar no mundo é inferior a um piscar de olhos.

Hoje, faleceu o pai da mulher do meu primo. Embora estivesse doente há tempos, isso não minimiza a perda e o vazio de quem fica. Era o patriarca de uma família muito unida e, com certeza, todos estão abalados, a despeito de sua religiosidade.

Certa colega de uma oficina de criação literária escreveu num conto que “morrer é sobre quem fica e não sobre quem vai”. Para aqueles que acreditam estarmos por aqui só de passagem, o trânsito ganha um sentido especial. Transcende a tristeza de não mais compartilhar momentos com a pessoa falecida, através da esperança na vida eterna e num futuro reencontro. Isso conforta e permite aos vivos mudarem em saudade amorosa uma situação de profundo sofrimento. Para quem a crença (ausência dela) ou a filosofia não comportam a nossa continuidade, morrer pode ser um golpe. Caso a vida tenha sido plena, as marcas da pessoa em sua descendência, na sociedade, nas artes ou na ciência são seu legado, uma forma de imortalidade, pois ela permanecerá enquanto houver alguém para recordá-la. Com tal perspectiva, o cético (quem sabe?) ficará menos angustiado. Se, contudo, se tratar de uma partida prematura, não houver contribuições a lembrar, ou parentes que pranteiem o indivíduo, este cairia num limbo. Nesse sentido, o sobrevivente experimentará uma sensação de inutilidade da existência humana. Também poderá concentrar toda a sua energia em conquistas materiais para perseguir alguma satisfação diante da frustrante realidade de finitude.

Ante a única certeza sobre nós: o fato de um dia cessarmos de existir neste mundo (ainda que consideremos a eternidade), fico perplexa com certas atitudes abundantes na atualidade. Minha inteligência não consegue processar atos naturalizados de violência, discriminação, crueldade, (auto)destruição. Nesta semana, por exemplo, vimos no noticiário um marido morto ao tentar defender a esposa de um assalto, uma criança perdendo a vida por não receber o medicamento já garantido nas instâncias legais e um comerciante negando um posto de trabalho a uma mulher em função da cor de sua pele. Armas, as quais possuem a serventia de atirar, ferir e matar, têm sua aquisição por populares incrementada, com aval do governo e defesa de muitos.

Assumamos que só temos esta vida. Portanto, o lógico seria investir o máximo em sua plenitude. É possível ser feliz, realizado, tranquilo e seguro em meio à injustiça social, mentira, ignomínia e agressividade? Salvo os psicopatas, cujas consciências não reconhecem freios morais, imagino que, em algum nível, a miséria do outro incomode e tire o sono daqueles que usufruem de conforto. Então, que narrativas são essas, capazes de embotar mentes e sentimentos, inventando razões para justificar o injustificável? Que medo coletivo e irracional é esse cuja força transmuta pessoas semelhantes a cada um de nós em vilões e monstros?

O Brasil ainda está em seu período eleitoral mais importante, o da renovação do congresso nacional e das câmaras estaduais e, no segundo turno, da escolha presidencial e de governadores. Trata-se de eleger pessoas que deveriam ocupar cargos temporários para servir ao povo (todo ele, sem distinção ou preferências), respeitando (não torcendo segundo sua conveniência) a lei. O que vemos nas campanhas, porém, são ofensas, agressões, vilezas, ausência de programas, mentiras deslavadas e manipulação. Entre os cidadãos comuns, tal clima se propaga, dividindo, ao invés de somar e multiplicar para construir.

Estamos numa democracia. Logo, todos os posicionamentos legais são aceitáveis e merecem respeito. Não é, infelizmente, a atitude observada. Olhando de modo crítico o cenário atual, concluo com tristeza que, ganhe quem ganhar, teremos pela frente quatro anos muito difíceis, pois a intolerância, a cegueira e a surdez já estão instaladas. Sempre desejo, ao terminar reflexões dessa natureza, estar enganada. Muitas vezes, constato, não estou.

Foto: Cristina Vergnano. Sabiá laranjeira fêmea sobre a calha de um telhado vigiando o filhote.

Retomando o fio da meada após dessa digressão, da minha parte, creio haver algo além desta vida, porque, ademais de questões religiosas, me parece um total desperdício o simples desaparecimento de seres sencientes. Ainda assim, reconheço a brevidade do tempo passado aqui na terra, nesta forma de existência. Tal constatação me faz sentir o absurdo das atitudes destrutivas que o ser humano com frequência adota contra si, os demais e o planeta. Como com tantas e tantos outros, esses sentimentos me envolvem numa bruma. Mas, por sorte (ou graça divina) há presentes que surgem inusitados e iluminam as veredas mais sinistras.

Foto: Cristina Vergnano. Filhote do sabiá laranjeira sobre um vaso no chão.

Ontem, eu estava trabalhando no meu computador, quando percebi um movimento e um ruído do lado de fora da janela. Devagar, me aproximei para não assustar o visitante: um sabiá laranjeira. Não estava só. Outros pios baixos vinham do chão. Procurei e dei com um filhote, já crescido. Aquela devia ser a mãe, cuidando do rebento que, talvez, estivesse aprendendo a voar. Provavelmente por isso, ela tenha me encarado, sem fugir, como de costume, à chegada de gente. Fiquei ali por uns momentos, apreciando a beleza e simplicidade da cena. De fato, só precisamos ter olhos para ver, ouvidos para ouvir e mente aberta para absorver a graça que nos vem a cada momento. Apesar dos pesares, espero e desejo, ainda havemos de ouvir cantar muitas sabiás.

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2 thoughts on “Sobre vida, morte e inusitados presentes

  • Paula Piano Simoes

    Bonita reflexão, Cristina. E tenho certeza que a Camila vai gostar de saber que foi citada no seu texto. Beijo

    • Oi, Paula!
      Obrigada. Comecei a crônica por causa da visita do sabiá, mas, como uma coisa puxa outra, acabei viajando por vários temas e fechando com o pássaro.
      Sobre a Camila, ela já sabe. 😉 E acho que ficou feliz, sim. Eu até entrei em contato com ela para pegar uns dados e fazer o texto do link com a sua minibio.
      Bjs.

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