Digicrônicas

As (des)razões de cada um

Por: Cristina Vergnano

A internet e sua comunicação rápida e efêmera quase nos fazem esquecer outras formas de entretenimento e interação, que tanto povoaram nossas vidas ao longo da história. Cada tempo, claro, tem sua estrela. Por exemplo, muitos dos leitores e leitoras provavelmente nunca ouviram falar dos “Disquinhos”, ou do seu companheiro na modalidade aumentada: o “Discão”. Mesmo tendo a tevê e o cinema, nós, em criança, ainda nos deleitávamos escutando contos e fábulas tocados na boa e velha vitrola. E, para quem nunca os viu, aí vai um recorte de um Discão.

Fragmento de uma capa de disco de vinil da coleção Discão, com as imagens referentes ao conto “O velho, o garoto e o burro” e ao logo da coleção. O disco negro sai parcialmente da capa.

A experiência era uma delícia que ativava a imaginação. Tudo o que tínhamos como estímulo visual eram os desenhos da capa do disco, um para cada história presente no bolachão (ou bolachinha) de vinil (se eram pequenos, só havia uma; quando grandes, cerca de três). Viajávamos nas vozes dos rádio/disco atores narrando, representando os personagens e cantando.  Bastava abrir a mente e embarcar na fantasia.

Boa parte das pessoas de minha faixa etária já se sentia, naquele momento, seduzida pela televisão (ainda em preto e branco), contaminada por sua forma de transmitir informações e lazer. Estávamos constituindo, mesmo sem o saber, uma geração visual. Ainda assim, sobrava bastante espaço e tempo para brincar na rua, nas calçadas, nos quintais e pátios de prédios, nas pracinhas, para ler e ouvir histórias contadas pelos adultos, ao vivo ou gravadas nos tais discos.

Num dos contos, um velho, um menino e um burro iam ao mercado da cidade trabalhar. Seguiam contentes e cantando pela estrada. O velho puxava o bicho e o garoto ia montado. Alguém viu a cena e achou por bem criticar. Como um moleque seguia confortavelmente, enquanto um senhor tinha de caminhar e puxar o burro? Os dois, então, decidiram trocar de lugar.

Mais adiante, a outra pessoa lhe pareceu um abuso um adulto descansar enquanto uma criança tinha a tarefa de conduzir o animal. Em face a essa nova reclamação, ambos decidiram caminhar ao lado do burro. Não faltou quem achasse essa atitude, porém, um despropósito. Por isso, tendo tentado outras combinações, o velho decidiu propor que ambos carregassem a besta.

Podemos imaginar o ridículo da cena e como isso repercutiu na população circundante. O que fazer? Já haviam experimentado todas as soluções possíveis e nunca conseguiam satisfazer o povo. A conclusão lógica, apresentada como moral da história, foi a de não ser possível agradar a todos. Logo, a melhor opção seria a que eles, de comum acordo, considerassem a ideal para o seu caso. Desta forma, retomaram seu caminho rumo ao mercado, tal como haviam decidido a princípio: o velho puxando o burro e o garoto montado sobre este.

Eu diria que a história infantil, para além da moral destacada, nos lembra outro aspecto: a importância de conviver com o diferente e, acima de tudo, respeitá-lo. Na atualidade, observamos choques de posicionamentos, não raro, manifestados de forma agressiva. As redes sociais estão repletas de ofensas e embates. Considero difícil conduzir uma nação, uma família, um grupo de colegas de trabalho ou de amigos sem entender que, nesses estratos sociais, não tratamos com amálgamas homogêneas. Os seres humanos têm backgrounds distintos, bem como crenças, gostos e necessidades. É impossível anteder a todos em igual medida sempre. Além do mais, sem saber os detalhes de cada situação, temos apenas perspectivas fragmentadas. Desconhecemos as várias razões presentes, sendo-nos, portanto, difícil proceder a uma avaliação acurada.

Voltando à internet, o observado em muitas postagens reflete essa atitude parcial, baseada somente no ponto de vista do indivíduo ou de seu grupo, no estilo “agrido primeiro e pergunto depois”. Também demonstram, com frequência, intolerância a escolhas que não são as de quem critica ou opina.

Podemos argumentar que certas afirmativas ferem o bom-senso (como não aderir, em plena pandemia, ao esquema vacinal), o conhecimento científico (afirmar, por exemplo, que a Terra é plana), a liberdade religiosa (ataques a religiões de matriz africana), os direitos humanos (agressões a mulheres, negros, comunidade LGBTQIA+), entre outros. Ainda nesses casos, contudo, uma abordagem mais argumentativa e ponderada tende a manifestar os citados respeito e tolerância, em oposição ao radicalismo e parcialidade subjetiva.

Parafraseando o velho e o garoto, dentro do limite da civilidade, faz sentido escolher as posturas mais adequadas às nossas carências e anseios, sem dar tanto ouvido aos múltiplos palpites. No entanto, o que vimos vislumbrando, nos últimos tempos, parece seguir bem mais as atitudes dos passantes e observadores do trio na estrada: apologias à intransigência e desejo de manipular o contexto para torná-lo espelho de si.

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