Digicrônicas

Águas de infância

Por: Cristina Vergnano

Ao sair pro médico, passei pelo edifício da minha infância e juventude. Chovia. O guarda-chuva não me deixava ver direito os detalhes, mas eu sabia que quase nada havia mudado. Na pressa, tive pouco tempo pra me deter e apreciar o ambiente. Ainda assim, lancei um olhar de raspão à pedreira, imponente e eterna, abraçando o prédio como se fosse um tesouro só seu.

Segui em frente. Uma ideia, contudo, se insinuou na minha mente, me carregando pra outro tempo, quando essa chuva contínua adquiria um significado todo especial. Não consegui prender a imagem, todavia, ela continuou, na sua imprecisão, fazendo cócegas na memória.

Médico, farmácia, laboratório de análises clínicas, compras. A manhã foi escoando, dando espaço à tarde, sem que houvesse alterações no dia: cinzento, frio, molhado e com pouca gente nas calçadas e lojas.

No regresso à casa, voltei pelo mesmo caminho. Algo me puxava praquele lugar envolto em lembranças. O aguaceiro desabou ao me aproximar do prédio. O jeito foi buscar abrigo sob o caramanchão da pracinha, esperando a estiagem. Minha vista vagou ao redor, subiu pela fachada, alcançando os quatro andares diante de mim e além: para a pedra.

Não sei se ela é de granito ou basalto. Na época de escola, eu me interessava por essas coisas. Nunca tive, porém, conhecimento sólido a respeito. Sobre sua cor escura, as bromélias e outras vegetações, que insistem em se grudar à rocha nua aqui e ali, adornavam a paisagem inflexível. Fixei-me, então, no brilho transparente e prateado da água que escorria pelas reentrâncias. Naquele momento, o filete lavou a bruma que fazia escapar a recordação.

Cachoeira! Como gostaria de vê-la de novo, de ouvir seu ruído, de senti-la sobre o corpo, mesmo trazendo tantos detritos de terra e plantas. Quantas crianças urbanas podem dizer que têm uma cachoeira particular? É verdade que a discreta queda d’água dependia das chuvas fortes e durava apenas um nadinha. Pra mim, no entanto, era uma verdadeira ocasião.

A água que se acumulava no alto do rochedo, contida pela vegetação limitada que compõe a cabeleira dessa elevação quase careca, se rebelava contra a prisão e rompia seus limites, escorrendo livre e ruidosa, branca de espumas, até os fundos do play. Foi assim então, continua sendo atualmente. Num dia, já adolescente, recordo que me deixei invadir pelo desejo infantil e entrei com roupa e tudo sob a enxurrada. Foi glorioso, mágico: era como fazer um passeio e entrar num riacho da Floresta da Tijuca sem sair de casa.

Quando a chuvarada acalmou, atravessei a rua e cumprimentei o porteiro, velho conhecido. Como quem não quer nada, perguntei pela cachoeira, falando da vontade de revê-la.

— Ih, nem pensar! A defesa civil interditou o pátio: risco de queda de fragmentos.

Dei de ombros, suspirei, deixei um cumprimento displicente e fui embora dali. É… essa cachoeira teria de se manter viva nas pedreiras da memória.

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