Fala de mulher
Por: Cristina Vergnano
Na manhã de 7 de março, bem cedo, um vereador e seus assessores apareceram na estação de trem da cidade periférica. Vinham carregados de rosas de plástico nas mãos, em caixas e sacolas. Com solicitude e um sorriso calculado, como fazem todos os anos, distribuíam às mulheres suas flores artificiais, desejando-lhes um feliz dia. A razão para se anteciparem à data era aumentar a abrangência da homenagem, alcançando as trabalhadoras que não estariam ali no dia 8, um sábado.
Quando a composição parou na plataforma, os diligentes políticos estavam oferecendo sua lembrança a três mulheres. A primeira recebeu sorridente a flor, dentes alvos na pele escura e marcada pelas durezas da vida, e ainda pediu mais uma. A segunda estendeu a mão tímida, olhos abaixados, encarando os próprios sapatos surrados. A terceira pegou a rosa por educação, porém suas feições denunciavam que, de bom grado, a lançaria na cara do tal deputado, enxovalhando-o repetidas vezes.
A porta do vagão se abriu e elas entraram apressadas, conseguindo se sentar, lado a lado, no mesmo banco. Sorte! A viagem é um estirão até a capital.
— Mas que sem-vergonha. Aposto como usou o dinheiro da prefeitura pra comprar essas flores e dar uma de bonzinho.
— Relaxa, criatura. Até que foi simpático. Aproveitei e peguei uma pra minha mãe também.
— Simpático… sei. Depois, flor pra quê? Dia da Mulher… Dia da Mulher uma ova! Aposto que em casa, bate na dele. Tudo safado.
— Aproveita, sua boba. Não é todo dia que a gente ganha flor.
— Tá de gozação, né? Ser mulher é uma M federal. Aguento mais de uma hora nesta porcaria de trem na ida e na volta, trabalho oito horas ouvindo insulto, ganho menos do que os caras que fazem a mesma coisa que eu, volto pra casa e tenho que preparar janta, arrumar as crianças e a casa, colocar a roupa pra lavar, enquanto o cretino do meu marido fica no mole, dizendo que trabalhou demais. E, se bobear, ainda leva uns estrupícios com ele pra ver futebol na televisão até tarde. E eu que me lasque. Te digo, ser mulher é uma M federal!
— Que barra!
— Ah, mas meu santo é forte! Eu volto homem na próxima encarnação. Aí, esses filhos da mãe vão ver só. Me vingo com juros.
— Pois eu não queria ser homem de jeito nenhum. Meu primeiro marido era um parasita. Tentou me bater um dia. Agarrei os trastes dele e pus tudo na rua. Fui na polícia e ele nem se meteu a besta comigo. O meu companheiro, agora, é gente fina. Tem seus defeitos, mas, quem não tem?
— Não sei se você tem sorte ou se é só fantasia da sua cabeça.
— Sou sonhadora, não! Tenho os pés bem no chão, tá? Ralei e ralo muito. Não tive estudo, mas minha filha vai se formar na faculdade. Entrou pela tal de cota, mas é muito inteligente. Deu duro e vai ter emprego bom garantido.
— Isso não quer dizer nada. Vai ver só como os homens acabam com a raça dela.
— Cruzes, criatura, bate na madeira! Você só vê desgraça. Gosto de ser mulher e tenho orgulho da minha menina. Ela vai longe.
— Só quero ver. E você, vai ficar calada com essa cara de trouxa, olhando pro chão e pra flor de mentira, é?
— Eu?
— Claro! Tem mais alguém conversando com a gente aqui?
— Sei lá… Acho a flor bonita, delicada, coisa feminina, né? Mulher é pra cuidar da família e da casa. A gente só trabalha porque precisa muito e o marido protege a gente, né?
— Protege? Só se for batendo, sua tonta!
— Cala a boca que você tá muito amarga. Não, querida, você ainda tá jovem pra entender. O homem da gente, se é boa pessoa, é companheiro. Não presta pra proteger, nem pra corrigir, muito menos pra bater. Serve pra acompanhar, construir junto.
— Não é o que meu pai sempre diz pra mãe e pra mim…
— Acredito. Ainda tem muito cara pensando assim. Eu já vivi bastante, minha filha. Vi de tudo: maldade, abuso… companheirismo, também. Mas sei de uma coisa: nossa história é a gente que faz. Não dá pra esperar sentada. Isso de príncipe encantado é coisa de conto de fada ou de novela.
— Não tô dizendo? Mulher já nasceu ferrada. Só rezando pra vir de novo, com badalo entre as pernas e par de calças.
— Larga mão de tanta besteira! Vai assustar a menina. E, você, me escuta: ainda é nova, deve regular com a minha garota. Nunca é tarde, viu? Tem que trabalhar? Tudo bem. Mas guarda um tempinho pra você, estuda, procura coisa melhor. E não fica esperando um homem pra salvar você. Se ele aparecer e for legal, beleza. Mas, entende: não vai te salvar, vai te completar e você a ele.
O trem parou na estação central, interrompendo o papo. As três desceram e tomaram, cada qual, seu rumo. Provavelmente, se encontrarão noutro dia qualquer, pois compartilham rotinas parecidas, quem sabe, para continuar a conversa.
Fico pensando… Como rosas artificiais, padronizadas, podem evocar colorido tão distinto? Ação demagógica à parte, espero que o evento tenha estalado uma centelha naquelas e em outras tantas vidas. De um gesto, mesmo estereotipado, pode nascer o simbolismo, brotar a reflexão, crescer um desejo. Daí à ação, pode levar uma eternidade, ou ser apenas um pulo.