Hipercontos

Fundo do Poço

Por: Cristina Vergnano

Certa manhã, os vizinhos encontraram seu Zé morto, no fundo do poço que estava cavando, no terreno de sua residência. Na opinião de todos, uma grande fatalidade. Entrevistados pela polícia e jornais, foram unânimes em estranhar a expressão de horror cristalizada na face do homem. Segundo eles, parecia ir além da dor e do susto provocados pelo acidente. Afinal, a morte teria sido quase instantânea; não daria tempo sequer para reação. Algo não fazia sentido…

***

“Não é possível! O poço é fundo, porém a queda nunca ia durar tanto assim. E como dói! Cada golpe nas pontas das pedras presas no barro, nos vergalhões do alicerce, parece ferro em brasa na carne, nas entranhas e na alma. Maldito espírito! Cadê você, agora, descomungado?… Cheguei? Este é o final?”

— Ah, grande Zé! Me alcançou? Até que enfim.

— Você? Ah, fantasma dos infernos, por que não veio me ajudar quando eu escorreguei na borda do buraco?

— Ué, e por que eu devia?

— Porque foi você quem me avisou do tesouro. Se queria meu bem, por que não impediu a minha morte?

— Querer seu bem? Eu? Donde você foi tirar essa ideia, homem?

— Seu filho d… Aiiii!

— Dói, né? Mas, agora, falta pouco. Logo, logo seu espírito desencarna.

— Não quero morrer, justo quando eu estava tão perto de ficar rico.

— É sempre assim. Todos iguais. Você e meus camaradas garimpeiros. Só o tesouro conta.

— Do que você está falando, sua alma penada?

— Penada, de fato. Mas, acabou. Estou vingada e vou poder descansar em paz.

— Descansar? Mas você é um assassino, me matou.

— Matei, coisa nenhuma. Se você não estivesse tão cego por riqueza, nunca ia cair numa lorota dessas. Ia seguir os conselhos de quem ouviu de você a história toda e continuar sua vida tranquila de sempre.

— Medíocre, você quer dizer.

— Tudo ponto de vista. Quem precisa de pote de ouro no fim do arco-íris, ou, no seu caso, no fundo do poço?

— Eu e muita gente. É o sonho dourado. Mas, afinal, por que você armou pro meu lado?

— Faz uns trezentos anos, por causa de um veio de ouro ridículo, meus parceiros deram cabo de mim e me enterraram neste lugar. Debaixo dessa rocha aí. Foi a agonia da morte violenta e da eternidade sem consolo.

— Embaixo desta pedra? Então… então, o pote de ouro era você o tempo todo?

— Pode imaginar? O prêmio era minha libertação.

— E o que eu tenho a ver com isso?

— Você, em especial? Nadica de nada. Qualquer infeliz que tivesse sede de ouro nos olhos servia. O importante era fazer alguém pagar o preço pela minha desgraça.

— Maldição. Maldita seja, sua assombração trapaceira!

— Olha, meu camarada, não adianta blasfemar. Sua alma, sua palma. Você vai ter muitas décadas pra pensar, aqui no seu poço. Com sorte, bola um plano genial e consegue algum trouxa pra cair na sua lábia.

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