Opinião

Chegaram as águas de março… novamente!

Por: Cristina Vergnano


É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol(…)
(…)São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração.

Rio de Janeiro. Início de março. Fim de verão a caminho. Novamente, as águas abundantes das chuvas e enchentes (anunciadas) invadem ruas e casas, alagam bairros e cidades, levam bens e pessoas.

O samba de Tom Jobim, Águas de março, composto em 1972, inspirado no cenário rural de seu sítio de Poço Fundo, na região serrana do estado do Rio de Janeiro, não trata de nossas atuais enchentes. Mas até poderíamos dizer que a sucessão de coisas enumeradas nos versos que citei acima nos podem parecer o que a enxurrada traz (ou leva), numa paródia macabra… É carro, é barro, é geladeira, é sofá, é asfalto, é pneu, é o vizinho, e sou eu…

Mais uma vez, como quase anualmente, somos brindados com a triste ocorrência das tempestades e inundações de verão. Não são nenhuma novidade. Nem adianta os governantes tentarem escamotear a situação com frases como: “choveu muito mais do que estava previsto para o mês inteiro apenas nesses dias”; “foi inesperado e nos surpreendeu”; ou ainda, “as pessoas não deveriam fazer suas casas em áreas de risco”. Ora, chove torrencialmente no Rio desde que me entendo por gente (e já estou com quase 60!). Lembro-me das notícias aterradoras das enchentes na avenida Brasil quando eu era pequena, das constantes dificuldades na Tijuca, sempre que chovia e a Praça da Bandeira enchia toda. Também das histórias que minha mãe contava das inundações por causa do Faria-Timbó, um rio lá no bairro de Inhaúma. E isso considerando que ela viveu por lá desde os idos de 1931 até o início dos anos de 1960!!!!

Ou seja, as ocorrências trágicas relacionadas às chuvas de verão e às enchentes na Cidade Maravilhosa são bem antigas. O pior é que continuam a ocorrer e as desculpas das autoridades responsáveis se mantém apenas palavras, muitas vezes sem noção.

Analisemos, agora, friamente a situação. O Rio de Janeiro tem uma geografia complicada. Fica incrustado entre montanhas e litoral. Suas zonas de baixada e vales eram (ou ainda o são) em muitos casos, áreas de pântanos e manguezais. Sua rede fluvial é grande. Tem, igualmente, muitas lagoas. E, claro, está o mar, para onde essas águas doces correm, ou deveriam correr. Se pensarmos na ocupação urbana (e olha que estou arriscando uma opinião, pois não sou especialista no assunto), temos que lembrar que pântanos e lagoas foram aterrados, rios tiveram seus cursos alterados ou foram canalizados, morros foram aplainados,  dunas desapareceram, a vegetação foi bem reduzida, o próprio litoral sofreu alterações. Vocês sabiam, por exemplo, que havia praia em São Cristóvão? (Se querem saber um pouco mais sobre a extinção de algumas de nossas praias e lagoas do passado, sugiro que visitem o site “Rio de Janeiro aqui”, especificamente: https://www.riodejaneiroaqui.com/pt/praias-antigas.html . É um site particular, de J. Renato A. Duarte. Seu autor se responsabiliza pelos conteúdos e diz que os cria com esmero. Eu gostei, então, vou aceitar sua palavra a respeito. Desculpem se eu estiver enganada.)

…Pois é… Tantas mudanças no entorno natural e o crescimento indiscriminado, com sua sucessão de edifícios, chão de concreto e asfalto… Não é de se admirar que as águas abundantes das chuvas de verão não encontrem lugares adequados para escoar. Nem temos como saber como era antes de nos aboletarmos por aqui. Provavelmente as inundações já ocorriam, mas índios e animais deveriam saber como se ajustar.

Sendo assim, nossa intervenção sobre o meio-ambiente criou condições favoráveis, independentemente da ação (ou, melhor dizendo, da falta dela) por parte dos responsáveis pela administração pública, para catástrofes recorrentes causadas pela subida indômita das águas pluviais (e fluviais por estas alimentadas). Acrescentemos a isso, agora, nossa limitada cidadania e educação, que insiste em deixar acumular lixo onde não seria devido. Também, somemos o descaso governamental, que não expande as galerias pluviais, não faz manutenção das existentes, nem limpa rios, córregos e canais com regularidade. Podemos, ainda, juntar a todo o já exposto o desequilíbrio ecológico do mundo atual e as mudanças climáticas dele decorrentes – chuvas mais frequentes, maior volume pluviométrico, frio e calor fora de hora… Aí está: receita para o desastre (anunciado)!

Daí decorre o triste espetáculo a que temos de nos submeter anualmente (ou várias vezes ao ano): perda de bens e, mais importante, perda de vidas! No entanto, de nada adianta só ficar reclamando e buscando culpados. Encher os telejornais com acusações. Destilar nossas mágoas e indignação, atirando pedras verbais (ou bolotas de lama) àqueles a quem responsabilizamos. Todos temos, provavelmente, nossa parcela de responsabilidade.  Só precisaríamos analisá-lo desapaixonadamente.

Claro que mais grave é observar a imobilidade histórica dos administradores de nossa cidade, aparentemente insensíveis aos desastres e às sucessivas tragédias humanas. Se essas ocorrências são tão antigas, como é que não se tomaram providências ainda? Como pode ser que não se acompanhem e fiscalizem as obras de expansão e ocupação urbanas? Como é que não se fazem campanhas educativas para orientar o povo no sentido de construir melhor, de forma mais segura e sensata, de não jogar lixo em locais inadequados, de manter as árvores e a vegetação local, vitais ao equilíbrio desse delicado ecossistema? Por que as obras, como os “piscinões” que hoje minimizam as enchentes de bairros como a Tijuca, tradicionalmente assolado por elas, demoraram tanto? Por que só fizeram isso e não tentam reparar os desequilíbrios gerados pelos aterros, desvios e canalizações de rios etc?

Não sou engenheira. A maioria de nós não o é. Desconhecemos, portanto, os princípios e procedimentos técnicos necessários para contornar o problema. Mesmo este sendo típico de nossa geografia e consequência de nossas escolhas e ações, creio (e acho que cremos todos) que é possível criar meios inteligentes de nos ajustarmos melhor a esse nosso meio-ambiente, evitando as perdas, o sofrimento e as mortes. Faltará vontade política, ou capacidade mesmo!… Assim, mais uma vez, choramos as desgraças, rezamos por melhorias e por segurança… e nos perguntamos (intimamente e a altos brados) até quando? (Enquanto isso, lá fora, a chuva volta a cair com intensidade e eu penso em todos e todas que não dormirão tranquilos mais esta noite…)

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