Digicrônicas

Gotas de amor, esperança e vida

Por: Cristina Vergnano

Já devo ter comentado isso com vocês, mas vou fazê-lo de novo porque cabe e é relevante para esta circunstância…. Moro numa rua bem tranquila na Tijuca, bairro da zona norte do Rio de Janeiro. Na verdade, é um conjunto peculiar de três ruazinhas, uma das quais, pasmem, só tem números ímpares! Isso lhe dá uma configuração (em termos de endereço, claro) de uma rua-ferradura, que vai por um lado da calçada e volta pelo outro, mesmo os carros só podendo trafegar em um único sentido.

Depois que a minha mãe morreu, no início de maio, vítima da covid-19, terminados os compromissos externos– primeiro de casa e hospital, depois de cemitério –, assumi seriamente a quarentena e o confinamento intenso. (Antes, não dava para fazê-lo de forma plena…) Assim fiquei todo o mês de maio e cerca de metade de junho de 2020. Não saí para nada! Pedi o necessário pela internet ou pelo telefone e ocupei meus dias com tarefas domésticas, leitura, escrita, televisão, orações e conversas por zap ou telefone. Mas, na segunda quinzena de junho, aproximadamente, avaliei que o pouco sol que tomava na varandinha exígua de meu apartamento era insuficiente, assim como os exercícios limitados à sala.

Decidi, então, sair, três vezes por semana, entre meio dia e duas da tarde, para caminhar no âmbito dessas três ruas. Não foi uma opção leviana. Saio sempre de máscara e com luva, não me sento ou encosto em nenhum lugar. Afinal, quero exercitar-me e pegar sol. Portanto, nem cabe pensar em me sentar, certo?!? Se me cansar, basta voltar para casa. Quando alguém passa por mim (e são poucos nesse horário), afasto-me, mantendo a distância segura e recomendada. Para conversar, faço-o de longe e brevemente. Só que poucas oportunidades tive para isso. Realmente, não são muitos os que circulam por aqui nestes tempos (embora eu esteja percebendo a cada dia os efeitos da reabertura)…

Alguns desses cuidados, no entanto, (como já deixo transparecer) pouco se mostram relevantes, posto que, na maioria dos casos, os passantes são entregadores de moto ou bicicleta, motoristas em seus carros, apenas de passagem ou, em algumas ocasiões, parando para alguma entrega, descansar um pouco, esperar alguém, ou estacionar. Uns moradores saem para passear com seus cachorros. Passo, porém, ao largo (até porque tenho medo que me pelo de cães!). Na pracinha, aparecem uns pais e suas crianças, mas, como não entro lá, olho-os de fora e de longe. Sem problemas! Outras pessoas que costumo ver são estranhos vindo do supermercado próximo, ocupados com seus volumes e suas vidas. Se é alguém conhecido, cumprimento e sigo na minha ronda.

Apesar do solitária que pode parecer esta atividade, estar ao ar livre, observar as borboletas que revoluteiam entre as árvores do local, escutar os diferentes pássaros, em especial bem-te-vis, ararinhas e beija-flores, sentir o suave sol de inverno, tudo isso dá uma sensação gratificante de paz. Não posso negar que me surpreendo, muitas vezes, com atitudes que observo nos poucos indivíduos que cruzam o meu caminho. Certo dia, vi um homem falando ao celular. Trazia sua máscara pendurada no pulso… “Qual seria a utilidade dela ali?” – pensei. Outros a levam sobre o pescoço, no queixo, pendurada em uma das orelhas, tapando a boca, mas não o nariz… Enfim… não sei bem se tais pessoas entendem a ineficiência de sua medida de cuidado, o risco a que se submetem ou que impõem aos demais. De qualquer modo, não cabe a mim intervir em suas ações. Sendo assim, continuo nas minhas várias voltas, de lá para cá, daqui para lá, circularmente, nas três ruazinhas, tomando sol e fazendo uma discreta caminhada.

Ocasionalmente, essa atividade até engraçada me traz uma surpresa agradável e significativa. Nesta semana, foram duas!

Costumo dar umas quantas voltas em torno da pracinha. É menos monótono do que apenas ir e vir nas ruas, longitudinalmente. Permite-me, também, observar as crianças quando lá estão, ou os detalhes do espaço de diversão. No outro dia, vi uma família de saguis andando em fila sobre o fio de eletricidade. O da frente, suponho que fosse o líder, parava e dava uns guinchos para os demais. Talvez avisando do perigo da minha presença (quem diria!!!). Vi, igualmente, pela primeira vez, alguém utilizando os aparelhos da “academia da terceira idade”, que foram colocados na praça um pouco antes de instaurar-se o isolamento. E nem era uma pessoa idosa!!!! Achei interessante. Fiquei pensando em como operacionalizar o seu uso, sem correr riscos de contaminação. Creio que teria que deixar isso para mais adiante no calendário deste ano todo conturbado…

Pois bem… Na última quarta-feira, quando eu fazia minhas voltas por lá, olhei para cima e vi, na sacada de um prédio antigo e baixo, uma senhora. Sorri para ela, sacudindo levemente a cabeça num cumprimento. Ela retribuiu o sorriso e acenou. Depois, me perguntou se eu estava com calor. “Na verdade, não…” – respondi. Aí ela fez referência às mangas da camiseta que eu trazia enroladas. Entendi logo a relação que havia estabelecido. Resolvi parar um pouco e dar corda ao papo. Disse-lhe que era para potencializar o sol, que estava bem tímido naquele dia.  A senhora, como réplica, esclareceu que tinha frio, mostrando o casaquinho que usava. Era idosa, afinal. E os idosos sentem frio (“é o que dizem” – completou). Mas, na verdade, com ela era diferente, esclareceu em seguida. Sempre fora friorenta!

Falei qualquer coisa que já não me recordo. A senhora me perguntou se eu a estava chamando para descer. Alertou que ela não podia, não devia. Desde que começara a quarentena, estava em casa. Tinha 93 anos (imaginem!!!! Lúcida e simpática!). “Deus tinha desejado que vivesse até ali e, agora, com esta doença, precisava atender aos pedidos de manter-se isolada para ficar segura e continuar vivendo” – arrematou.

Muito interessante seu raciocínio… Em nada aquela restrição parecia ter-lhe tirado a simpatia e alegria de viver. Ficava ali, tomando sol, vendo a vida passar diante de seus olhos e abria-se à conversa, amigavelmente, quando a oportunidade se lhe oferecia. Despedi-me e segui meu rumo, refletindo sobre tudo aquilo, sobre a impressão agradável que me causara, sobre o fato de que deveria ser muito bom viver tanto e permanecer assim. No meu retorno do fim da rua, ainda a vi na sacada. Mas, em outra volta, já havia entrado e fechado a porta com venezianas de sua varanda.

Não houve outro fato digno de nota naquele passeio… Então, terminada minha meia hora regulamentar, voltei para o apartamento, a fim de assumir as outras tarefas do dia.

Na sexta-feira, saí para fazer minha minicaminhada sem ter tomado café da manhã. Tinha ido dormir bastante tarde na noite anterior e, claro, para descansar um pouco mais, levantei-me igualmente tarde. Como meu marido estava ocupado numa ligação, achei que valia a pena adiar o desjejum um pouco mais. Em todo caso, não estava mesmo com fome…

O tempo estava bem friozinho e o sol quase não dava o ar de sua graça. O conjunto de ruas continuava quase todo vazio, mas, chegando às esquinas de uma ponta e da outra, se podia perceber a agitação do “mundo exterior” comparada àquele oásis de calmaria arborizada. Nem parecia que a pandemia continuava ativa, que as mortes seguiam acumulando-se… Comecei minha rotina de dar voltas pelas ruas, sentindo o ar fresco e o mormaço leve, observando as borboletas, escutando os pássaros, olhando a criança que brincava na pracinha, esquivando-me de carros, motos e bicicletas eventuais. Teria sido mais uma jornada sem novidades, caso não tivesse novamente elevado minha cabeça ao passar por outro prédio, no extremo oposto daquele de quarta-feira.

Na janela, encontrava-se outra senhora, mais nova que a anterior, com uma aparência mais vigorosa. Eu a conheço, mas não sei seu nome. Um lugar como este no qual moramos é como um pedacinho do interior. As pessoas se cumprimentam, ocasionalmente conversam, sentem-se, arrisco dizer, parte de uma comunidade, mesmo com reservada distância. Sorrimos uma para a outra. Ela me pediu que me achegasse por um momentinho. Trazia um saco transparente na mão, com coisas coloridas dentro. Disse-me, então, que era para mim e lançou o pacote pela janela do segundo andar. Quase consegui pegá-lo. Caiu no chão, mas, como estava fechado, seu interior se manteve intacto.

– São máscaras! – esclareceu. Estou aqui em reclusão faz já 100 dias. Minha filha sai para resolver coisas, mas eu não posso, é arriscado. Então, o que eu posso fazer para ajudar é confeccionar máscaras. São suas! Se precisar mais, é só me pedir.

Eram lindinhas! Coloridas, de tecido de algodão, delicado, com estamparias mimosas. E tão bem costuradas!!!! Que trabalho cuidadoso! Que gentileza! Que desejo sincero de fazer parte do todo, de contribuir com os demais…

Conversamos um pouco sobre a minha mãe. Ela me via passando com mamãe para a missa semanal, portanto, nos conhecia de vista. Não sabia que havia falecido. Tinha praticamente 89 anos quando morreu. Então, soube que minha interlocutora tinha 86, a idade de uma tia minha! Deve ser tocante ter notícia da morte de alguém que lhe é contemporâneo. Imagino que nos dê uma maior consciência de nossa própria mortalidade…

A senhora lamentou a perda, mas não perdeu a simpatia e cordialidade. Agradeci o presente inesperado e aproveitei para perguntar seu nome e informar-lhe o meu. Despedi-me, assim, de Beatriz, carregando as máscaras com carinho e pensando na dimensão simbólica de sua atitude.

De fato, o ser humano não deixa de surpreender. Seja por sua brutalidade, por sua indiferença para com os demais, o que nos dói e assusta; seja, como neste caso, pela sensibilidade e solidariedade que é capaz de demonstrar. Muitos dos que estão morrendo por covid ao longo do mundo são pessoas com comorbidades, várias delas são idosas. Eco de vozes cruéis argumentam que se trata de pesos para a sociedade. Que só geram custos, gastos de recursos e já não contribuem para a coletividade. Será mesmo?!?

Ao conversar com a velhinha de 93 anos na sacada, recebi calor humano, simpatia, esperança no futuro, confiança em Deus. Ao encontrar-me com Beatriz, além das máscaras, pude sentir a consciência de pertença, o desejo de continuar sendo útil e participativa, solidária com os demais. Em nada, nenhuma das duas caracterizou-se como um estorvo, algo descartável.

Já estou quase entrando na terceira idade, mas ainda sou bem mais nova do que ambas. Senti-me acarinhada, acolhida e tive muita vontade de retribuir de alguma forma. Foram elas que me motivaram a escrever o que vocês agora leem. São pessoas lindas, exemplos de amor, esperança, pérolas de vida! Ótimas lições para cada um de nós que pensamos em, um dia, chegarmos lá…

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