Narrativas breves

Despojos

Por: Cristina Vergnano

Muitos de nós já ouvimos falar na guerra de Troia, ou, ao menos, nas expressões: “cavalo de Troia” e “presente de grego”. Trata-se de um evento que hoje se sabe real, mas está muito mesclado com a mitologia.

Para desenrolar o fio dos acontecimentos, segundo a literatura e os mitos gregos, precisamos começar pelo sequestro de Helena pelo príncipe troiano Páris, por ela apaixonado. Tendo sido levada para Troia, despertou o desejo de vingança de seu marido, Menelau, rei de Esparta, fato que desencadeou a guerra entre os dois povos e cuja duração foi de 10 anos.

Nenhuma guerra é romântica, por mais que se lhe atribuam razões nobres ou personagens épicos. Há destruição e perdas de vida. Em geral, sofrem mais os vulneráveis e as tragédias anônimas se perdem no emaranhado dos jogos de poder.

Eurípedes, dramaturgo grego, escreveu uma tragédia, As Torianas, na qual retrata retalhos dessas perdas. Destaco, em especial, um episódio: o momento em que Andrômaca, viúva de Heitor, herói troiano, recebe a notícia de que seu pequeno filho será executado, justamente por ser herdeiro do trono da cidade caída.

O que lhes proponho a seguir é uma releitura da cena. Cada qual pode imaginá-la, visualizá-la e senti-la com a percepção que lhe pareça mais apropriada.

***

Sob as ruínas das muralhas de Troia, desenvolve-se o drama de quem nada mais tem a perder, pois pouco lhes importa. Mulheres troianas, antes nobres, agora escravas, testemunham o destino imposto pelas jogadas dos deuses no tabuleiro da vida.

Taltibius chega para levar à viúva de Heitor a decisão dos chefes gregos. Mas o mensageiro vacila… Entre conquistador e cativa, adivinha-se o desfecho trágico. Por fim, ele brada que Astianax não será escravo: morrerá, pois o herdeiro de um herói está destinado a grandes feitos e vinganças.

Nem nos mais sombrios presságios, Andrômaca teria imaginado a dor que agora lhe estraçalha a alma. Ela nada pode: os deuses lançaram as peças e avançaram as casas; não há como recuar. O soldado o sabe e adverte a princesa troiana. “Ah, o escárnio de uma raça de violentos, que não respeita sequer a inocência, nem vê nela algo além de despojos de guerra!”

A mãe abraça o filho, como se pudesse gravar na pele a memória do amor roubado. Despojada da realeza, rebaixada a coisa cujo corpo será possuído contra sua vontade, encontra-se ferida de morte, porque o pior dos tormentos, o vive ali, com um clamor que chega ao Olimpo. Seu pequeno menino lhe é tirado para sempre, vítima de sua origem. Terá uma morte atroz e seu espírito vagará solitário pelo Hades. Nada, nem ninguém, virá em seu socorro, sequer seu glorioso pai. Morre o garoto. Morre, também, a mãe, pois é ânfora vazia que errará sem sentimentos pela terra, ansiando o esquecimento do submundo. Então, no carro dos espólios, se esvai desta realidade, mescla de sombra da altivez de outrora e incompletude.

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