Digicrônicas

Por outros olhos…

Por: Cristina Vergnano

Para minha mãe, Wilma, no seu primeiro mês de falecimento.

1 de junho de 2020. Há um mês, no dia 1 de maio, ela fechou os olhos para abri-los lá no céu. Bem… fechá-los é modo de dizer, uma figura, um eufemismo para o ato de morrer, pois, tal como estava, deitada num leito de CTI de isolamento, em coma induzido, com respirador e máquina de hemodiálise, já tinha os olhinhos bem fechados.

Viveu 88 anos… quase, quase 89 (morreu 6 dias antes do seu aniversário). Se vocês conversassem com ela a respeito, a ouviriam dizer que viveu. Não fez grandes planos… Não criou altas expectativas… Foi seguindo sua vida, conforme esta se lhe apresentava. Teve muitos momentos difíceis, mas achava que a vida tinha sido, no final das contas, boa, com a graça de Deus, em Quem acreditava e à vontade de Quem se entregava docilmente.

Poucas coisas eu me lembro de ter ouvido de sua boca como uma queixa rude, reprovação ou imposição. Acho até que tinha uma certa dose de obstinada teimosia (talvez um traço do seu signo de touro), mas não costumava se impor. Não tinha gestos de agressividade, não gostava de comandar, tinha um jeito meigo de ser e de levar os outros a seguirem suas orientações (quando cabia). Uma coisa, contudo, (recordo bem!) ela fazia questão de reforçar e reiterar: seu nome, Wilma, era pronunciado como no inglês, com som de “u” para o “w”. “Não com o som de ‘v’ como no alemão!” – insistia em destacar. Uma vez, comentou comigo que, nas palavras cruzadas, havia uma opção: “mulher vil e má”, que gerava o nome “Vilma” como resposta para colocar nos quadrinhos (com v ou com w, tanto faz) e que isso a tinha marcado de forma incômoda. Dá até para entender, né?! Em todo o caso, para quem assistiu aos Flintstones em som original, em inglês, basta recordar como o Fred chamava aos gritos a sua mulher quando algo estava errado: “Wilmaaaa!!!!” (ou seja, “/uilmaaaa/”). Assim, nem soa tão estranha a exigência dela!

O ponto a considerar é que todos e todas nós temos uma autoimagem. Esta, no entanto, é a perspectiva subjetiva e pessoal que possuímos/construímos de nós mesmos. Não significa que corresponda à plena e completa verdade dos fatos (verdade entendida como acontecimento empírico e comprovado), muito menos se afine com a representação que os demais têm de nossa pessoa. Ela, por exemplo, tinha um apelido de infância: “Beleza”. Tinha sido dado por sua madrinha de crisma. Não entendia o porquê. Nunca se achou bonita. E, definitivamente, não gostava do seu nariz, que considerava grande. Um dia, então, resolveu perguntar à madrinha a razão do apelido. A resposta foi a mais óbvia e cristalina: “Ué?!? Porque você é bonita, claro!”

E assim são as coisas… O que observamos diante do espelho é um reflexo da forma como nos vemos. Às vezes está supervalorizado, às vezes, subestimado… Sempre será um constructo muito particular, que poderá oscilar com nossos humores. E, como todos temos essas perspectivas subjetivas diante da vida e das coisas, serão distintas das infinitas percepções que as pessoas, com quem convivemos ao longo de nossa existência, projetam de nós.

Quando uma pessoa morre, os parentes mais próximos recebem um sem-número de mensagens de pêsames. É muito comum que boa parte delas expresse o que se sentia sobre o falecido, como essa pessoa era vista. Quase sempre são opiniões positivas, pois alguém precisa ser muito cruel ou sem noção para denegrir a imagem do morto ante seus familiares e amigos pesarosos e em luto.

Apesar das inúmeras possibilidades de interpretação e opinião, Wilma gerou imagens mais ou menos homogêneas e próximas. “Uma mulher meiga, amável e temente a Deus!” “Um jeitinho meigo, que tanto nos inspira a aceitar os acontecimentos da vida.” “Uma guerreira e exemplo de vida” “Sempre foi muito querida! Nunca ouvi uma pessoa sequer fazer citações sobre ela que não fossem elogiosas!!! E com justiça, porque ela sempre foi uma pessoa muito especial. Entregou seus exemplos de vida, mas sempre sendo extremamente carinhosa com todos!!!”“A tia que jogava jogo dos pontinhos e adedanha, estudava, via Castelo Rá-tim-bum e Vale a pena ver de novo, fazia comidas gostosas (batata e ovo fritos) para os sobrinhos em segundo grau, que ficavam com ela depois da escola quando eram pequenininhos.” “Uma pessoa que conduzia sempre com bondade assuntos delicados.” “Tinha um sorriso meigo e franco, com olhinhos apertados e voz mansa.” “Quando criança, sempre foi boa aluna e o braço direito das professoras.” “Sempre foi dócil e meiga.” “Foi uma boa filha, uma boa irmã, boa amiga, boa esposa, boa mãe, boa tia. Uma pessoa especial.”

Resumindo, seja parente, amigo ou simples conhecido, meiguice, delicadeza, amabilidade, fé, força, coragem e resignação ao enfrentar a vida foram as imagens que se formaram em suas mentes e corações sobre essa senhora de atitude jovial e fresca. Ela morreu em meio a uma pandemia. Não pôde ter velório presencial. Mas foi cercada por uma coesa corrente de orações e pelos sentimentos irmanados que quase se tornaram físicos, em sua divulgação pelos meios virtuais, tão fortes e sinceros foram. Talvez seja raro encontrar tamanha unanimidade quando diferentes pessoas lançam seu olhar sobre alguém. Mas isso conforta e inspira. Dá mais segurança e confiança para enfrentar um desconhecido que se nos apresenta de forma ameaçadora. Apenas seguir vivendo, sorrindo para flores e crianças, cantarolando e desfrutando um dia de cada vez, como ela nos ensinou a fazer!

Compartilhe!

One thought on “Por outros olhos…

Deixe um comentário